quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A Metamorfose [Die Verwandlung]

Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformado num inseto monstruoso.
Deitado de costas sobre a própria carapaça, ergueu a cabeça e enxergou seu ventre escurecido, acentuadamente curvo, com profundas saliências onduladas, sobre o qual a colcha deslizava, prestes a cair. Suas inumeráveis pernas, terrivelmente finas se comparadas ao volume do corpo, agitavam-se pateticamente diante de seus olhos.

[Parágrafo inicial de A metamorfose, de Fraz Kafka]
[Tradução de Lourival Holt Albuquerque]
[Foto Metamorphosis of Mr. Samsa, de
~ozgurdinler]

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Jogo da amarelinha [Rayuela]


O jogo da amarelinha [Rayuela]

Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia.

[Parágrafo inicial (ou não) de O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar]
[Tradução de Fernando de Castro Ferro]
[Foto Pont des Arts, Paris, de Offering]

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O Lutador

O lutador

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.

Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.

Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.

O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.

[Poema O lutador, de Carlos Drummond de Andrade]

[Foto Words and Thoughts, de Hermin Abramovitch]

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O Duplo - Um poema de Petersburgo [Двойник: Петербургская поэма]

Fora de si, irrompeu na sua própria casa o herói da nossa história; sem tirar o capote nem o chapéu, passou o corredor e, como que atingido por um raio, parou à ombreira da porta do seu quarto. Todos os pressentimentos do senhor Goliádkin se tinham concretizado plenamente. Tudo o que suspeitara e receara era agora realidade. Cortou-se-lhe a respiração, a cabeça começou a andar-lhe à roda. O desconhecido estava sentado diante dele, também de capote e chapéu, em cima da sua cama, com um ligeiro sorriso e franzindo um pouco os olhos, a acenar-lhe amigavelmente com a cabeça. O senhor Goliádkin quis gritar mas não conseguiu; quis protestar mas não teve forças. O cabelo pôs-se-lhe em pé, os joelhos dobraram-se de terror. De resto, tinha razões para tal. O senhor Goliádkin reconheceu categoricamente o seu amigo noturno. O seu amigo noturno mais não era do que ele próprio - o próprio senhor Goliádkin, outro senhor Goliádkin, mas absolutamente igual a ele - numa palavra, o que se chama um duplo dele, em todos os sentidos.

[Trecho de Um Duplo - Poema de Petersburgo, de Fiodor Mikhailóvich Dostoiévski]
[Tradução de Nina e Filipe Guerra]
[Foto Magritte, de Mike Outloud, baseada no quadro La reproduction interdite (1937), de René Magritte]

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Dedicação


Dedicação

Aos seis anos ergueu um castelo de areia na praia e hoje, muito depois, pode-se ver ali um homem que, com mãos decrépitas, defende aquela construção contra os eternos embates do mar.

[Miniconto de Jorge Timossi]

[Foto Pail Magritte, de Fzfile]

sábado, 25 de setembro de 2010

Crime e Castigo [Преступление и наказание]

Ao cair da tarde de um início de julho, calor extremo, um jovem deixou o cubículo que subalugava de inquilinos na travessa S., ganhou a rua e, ar meio indeciso, caminhou a passos lentos em direção à ponte K.

[Parágrafo inicial de Crime e Castigo, de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski]
[Tradução de Paulo Bezerra]
[Foto Dostoevsky's hero, de Lafaette]

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Grande Sertão: Veredas I

Grande Sertão: Veredas I

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado ou o homem dos avessos.

[Trecho de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa]
[Foto Human Face, de Anderton]

sábado, 11 de setembro de 2010

Seio

Seio

O teu seio que em minha mão
Tive uma vez, que vez aquela!
Sinto-o ainda, e ele é dentro dela
O seio-ideia de Platão.

[Poema de Manuel Bandeira]
[Foto
Together, de Lushious]

quarta-feira, 4 de agosto de 2010




O amante de Lady Chatterley

Nossa época é essencialmente trágica; assim sendo, recusamo-nos a vivê-la como tal. O cataclismo aconteceu, estamos entre as ruínas, começamos a construir pequenos novos espaços, a ter novas esperanças. É um trabalho bastante árduo: agora não há caminho fácil para o futuro; mas ou contornamos ou vencemos com esforço os obstáculos. Temos de viver, não importa quantas vezes os céus tenham desmoronado.


[Parágrafo inicial de O amante de Lady Chatterley, de David Herbert Lawrence]
[Tradução de Glória Regina Loreto Sampaio]
[Foto Collapse, de Kannagara]



Anna Kariênina
 
Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira.
 
[1a. frase de Anna Kariênina, de Liev Tolstói]
[Tradução de Rubens Figueiredo]
[Foto Family, de Bule]

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O Evangelho Segundo Jesus Cristo

O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.

[Trecho de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago]
[Foto Childbirth, de Bahus]

sexta-feira, 11 de junho de 2010



O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde
 

Lorde Henry olhou o rapazola. Era mesmo muito bonito, os lábios escarlates bem torneados, os olhos azuis, claros, os cabelos dourados, encaracolados. Havia algo, naquele rosto, que fazia com que se acreditasse nele imediatamente. Ali estava toda a candura e também a pureza passional da juventude. Sentia-se que o jovem se mantivera inatingido pelo mundo. Não era à toa que Basil Hallward o adorava.
 

[Trecho de The Portrait of Dorian Gray, de Oscar Wilde]
[Tradução de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn]
[Foto About a boy, de Indiae]

domingo, 16 de maio de 2010

Lolita

Lolita, de Vladimir Nabokov


Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.

Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita
.


[1o. parágrafo de Lolita, de Vladimir Nabokov]
[Tradução de Jorio Dauster]
[Foto Alessya portrait 14 25, de Wood Eye]


Memórias do Subsolo

Sou um homem doente...Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a "pregar peças" nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.


[1o. parágrafo de Memórias do Subsolo, de F. M. Dostoiévski]

[Tradução de Boris Schnaiderman]

[Foto Charles Bukowski, de *gottfriedhelnwein]

sábado, 15 de maio de 2010

Hierograma - IV

Hierograma - IV

Beija-me...
Depois, se não me quiseres,
dir-te-ei, depressa, o nome
de alguém que te ama...

[4a. estrofe do poema "Hierograma", de João Guimarães Rosa]
[Foto Would you kiss, de Bloody Lin (Michelle)]

Hierograma - III

Hierograma - III

o jardineiro desfolha e derrama
na suburra do charco,
em lácreos jasmins de cheiro açucarado,
os beijos mais raros de uma Imperatriz...

[3a. estrofe do poema "Hierograma", de João Guimarães Rosa]
[Foto Philadeuphus - Jasmin, de Elentarie]

Hierograma - II



Hierograma - II
A brisa baralhou
o enxame azul de borboletas
que se casavam nas corolas,
e logo todas trocaram de par...
[2a. estrofe do poema "Hierograma", de João Guimarães Rosa]
[Foto Two Spotted Line Blue, de Inckurei]

Hierograma - I


Hierograma - I

No jardim pagão,

os panos de púrpura de uma fúcsia

poliandra,

oito estames preguiçosos

namoram um pistilo voluptuoso...

[1a. estrofe do poema "Hierograma", de João Guimarães Rosa]

[Foto Fucsia, de CMB]

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Elegia



Elegia

Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez...

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim...
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.

[Poema de João Guimarães Rosa]

[Foto French Feet Kissing, de Sandra Gonçalves]

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Medo da felicidade


Medo da felicidade

Estremecemos juntos...

Que Potência má será a soberana

desse vento frio que passou?

[Hai-Kai de João Guimarães Rosa]

[Foto separation anxiety, de devilicious (Mary)]

Taumaturgo

[Antiga entrada do Hagembeck Zoo, em Hamburgo, Alemanha]

Taumaturgo


Muitos bichos reunidos?: um jardim Hagembeck.

Ou, quem sabe, talvez, a arca de Noé...

Mas um gênio os dirige?: um livro de Kipling...


[Hai-Kai de João Guimarães Rosa]

[Foto nostalgia, de Ann Chris]